Revista de Nossa Senhora
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Diário de Missão: Cué cué…

Publicado em 1 de novembro de 2010 / Edições > Novembro - 2010 >

Dada a partida, começamos a singrar o volumoso, misterioso e turvo Flumen Nigrum. Serão quinze dias visitando as comunidades. A lógica inicial é simples. Chega-se à aldeia, avisa-se o dia em que haverá missa e parte-se para outra.

Texto: Pe. Reuberson Ferreira, mSC

Precisamente às sete da manhã ronca estrondosamente, interrompendo a divina orquestra das corredeiras do rio, o motor de um pequeno barco chamado “voadeira”. Às margens do majestoso Rio Negro, já estão embarcadas algumas malas, cerca de duzentos litros de gasolina e um motorista (Prático). Faltam somente o Padre e o noviço devidamente equipados e com muita ansiedade, curiosidade, expectativa e , por que não, algum medo. Trata-se, pois, do início de uma itinerância, isto é, a visita que é feita a inúmeras comunidades ribeirinhas que fazem parte da paróquia onde os Missionários do Sagrado Coração atuam no alto Rio Negro, no coração da Amazônia.

Dada a partida, começamos a singrar o volumoso, misterioso e turvo Flumen Nigrum. Serão quinze dias visitando as comunidades. A lógica inicial é simples. Chega-se à aldeia, avisa-se o dia em que haverá missa e parte-se para outra. De aldeia em aldeia, uma após outra, ao final do dia chega-se à última comunidade a ser avisada e visitada, onde passaremos a noite e o dia seguinte, até que partamos para a próxima comunidade. Trata-se, pois, de Cué-cué. Um lugar simples, que leva esse nome devido à mitologia indígena que diz que nessa parte do rio há uma pedra, semelhante a um sapo, que emite um som igual ao que dá nome à comunidade: Cué-Cué.

Ao desembarcamos nesse povoado, somos logo acolhidos por algumas crianças indígenas da etnia Baré. Elas tomam conta de nós e ajudam a carregar nossas malas. Caminhamos por uma pequena trilha às margens do rio e avistamos todas as casas – sete, no máximo. São precisamente quatro horas da tarde. Não enxergamos viv’alma. Conduzidos pelos pequeninos Barés, que ora falam português, ora falam sua língua nativa (Nhengatu), fomos levados à casa do Catequista, autoridade religiosa local. A mulher dele nos recebe muito bem e logo nos leva ao barracão comunitário, onde ataremos nossas redes e dormiremos à noite.

O sol declina, a noite aproxima-se, e os membros da comunidade regressam de suas roças. Não demora muito e o catequista aparece no barraco onde estamos alojados e oferece-nos um lauto jantar. No cardápio, xibé, quinhapira (peixe apimentado) e café. Bendizemos a Deus pelo pão que nos oferecia, pois acreditávamos que naquela noite dormiríamos com fome mesmo.

Na manhã seguinte, cedo, levantamos-nos. Trata-se de um dia especial para a comunidade. Visita dos padres implica em mudança de rotina, dia de oração e festa. Nada de roça! Todos com a sua melhor roupa, após o desjejum, ajuntam-se na capela. Homens, mulheres e crianças todos estão lá. Alguns chegam cedo, pedem o sacramento da penitência. Confessam-se com uma piedade invejável. Na simplicidade de cada um, percebe-se que são mais sofredores que pecadores.

Cantos ensaiados, confissões atendidas, começamos a celebração. O olhar atento e o silêncio monástico, revelam o amor que as pessoas têm à Eucaristia, a Cristo, à Igreja e a Deus. Uma fé sincera e inocente, mas, ao mesmo tempo, resistente às intempéries da vida e à parca assistência religiosa a eles dispensada pela Igreja.

Ao fim da missa, as mulheres saem em disparada e recolhem-se nas suas casas. Os homens ficam na Maloca comunitária, conversando com o Padre, sobre a fé, sobre a vida, sobre as dores, sobre as alegrias…..sobre a política. Quanto menos se espera, as apressadas mulheres, vão se aproximando-se da Maloca comum, com uma bacia na cabeça, onde trazem beiju, xibé, mugeca, japurá, arroz, farinha, peixe cozido (apimentado, quinhapira) e outras iguarias. Num verdadeiro ágape fraterno, numa celebração que se faz comunhão, partilhamos o pão, fruto do suor e do trabalho de homens e mulheres, calejados pela lida na roça, pelo manejo do facão, da enxada e do remo da canoa.

Após a partilha do pão, recolhemos nossas coisas, saudamos afetuosamente o povo e nos pomos, novamente, em nossa nau, a singrar o caudaloso Rio Negro, rumo a uma nova comunidade que já nos aguarda ansiosamente.

Pe. Reuberson Ferreira, mSC , trabalha no Alto Rio Negro, Diocese de S. Gabriel da Cachoeira(AM).

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